O debate a respeito da desindustrialização
dá a sensação de que uma nova peste assola o país. A discussão vai se enredando
num cipoal de dados e conceitos de desnortear. Cada qual vê a
"desindustrialização" que quer, como se uma cortina de fumaça
ocultasse o real e seus processos dinâmicos, muitas vezes inacessíveis a olho
nu.
De modo a colocar os pingos nos
"is" e retomar a credibilidade do debate, não custa recorrer à
história econômica brasileira e a alguns pressupostos teóricos mínimos.
O Brasil passou por um processo de
industrialização entre 1930 e 1980. Antes de 1930, tínhamos crescimento de
indústrias. O motor da economia estava na demanda externa, que nutria as nossas
exportações de produtos primários, especialmente o café. A industrialização
viabilizou o deslocamento do eixo dinâmico da economia, na feliz expressão de
Celso Furtado. A economia avançava agora por meio das transformações geradas
pela indústria, como explicitou a professora Maria da Conceição Tavares. Apesar
de todas as distorções, o Brasil foi um dos poucos países da periferia
capitalista que experimentaram uma autêntica mutação industrial, nos termos de
Antônio Barros de Castro.
País vive uma transição estrutural que, no
limite, pode acarretar o esvaziamento da nossa estrutura industrial
Esses ensinamentos devem ser levados em
consideração se quisermos entender como do passado emergiu o presente e quais
as oportunidades o futuro reserva para a indústria brasileira no novo quadro
internacional.
Em termos bastante sintéticos, nos anos
80, a indústria manteve-se congelada, mas perdeu produtividade, tanto pelo
fechamento forçado da economia para gerar superávits comerciais num contexto de
estagnação, como também pelas transformações tecnológicas gestadas lá fora.
Nos anos 90, a indústria modernizou-se,
apesar de ter se enfraquecido, perdendo elos da cadeia produtiva e eliminando
empregos, em virtude de um regime macroeconômico que, além de profundamente
instável, aguçava a pressão competitiva. Foi então que passou a circular pela
primeira vez o fantasma da desindustrialização. Os neoliberais a defendiam: a
industrialização havia ido longe demais. A esquerda não tinha dúvida: o Brasil
se desindustrializara, tendo perdido o bonde da história.
Durante os anos 2000, o quadro mudou
sobremaneira. O Brasil voltou a crescer e o regime macroeconômico - facilitado
pelo ambiente externo, e pelas medidas de estímulo à demanda interna - permitiu
que o produto e o emprego industriais se expandissem de maneira relevante, bem
acima dos anos 90. Entretanto, mais precisamente no ano de 2011, o Produto
Interno Bruto (PIB) total passou a crescer bem à frente do industrial, que
inclusive se mostrou estagnado no ano passado.
Desde então, dois diagnósticos prevalecem.
Muitos economistas situados à esquerda condenam a desindustrialização,
tomando-a como um fato indiscutível. O país estaria matando a possibilidade de
agregar progresso técnico e transformando-se numa grande fazenda exportadora.
Desindustrialização rima com primarização.
Já os neoliberais - agora eles estão
divididos - repartem-se em dois grupos. Uns encaram a desindustrialização como
uma tendência de toda economia em estágio de maturidade. Outros admitem que há
um problema industrial, que se deve à nossa reduzida competitividade, causada
pelos impostos e salários, e à precária qualificação da força de trabalho,
eterna culpada pela baixa produtividade.
Sugere-se aqui uma hipótese alternativa: o
problema parece residir na (in)capacidade de se engendrar uma nova interação
entre a indústria de transformação - que soubemos construir e manter a duras
penas, deixando, entretanto, que algumas importantes rachaduras se instalassem
- e a dinâmica econômica. Esta é, por sua vez, afetada pela nova realidade
global em termos conjunturais (lei-se guerra cambial) e estruturais (ascensão
chinesa com industrialização integral e competitiva a partir de cadeias
produtivas fortes).
O baixo crescimento recente tem a ver com
o fato de que o regime macroeconômico, neste novo contexto, deixou de trazer a
expansão quantitativa e qualitativa da indústria. O conjunto de medidas
adotadas pelo governo procura ajustar este regime, de modo a contemplar maior
espaço para a produção industrial interna, sem o que será impossível chegar a
uma taxa de investimento superior a 20%.
Ao contrário, supor que devamos celebrar a
melhoria nos termos de intercâmbio trazida pela China, modernizando apenas a
indústria que se mostrar competitiva, significa ocultar interesses escusos que
não querem perder com a mudança de enfoque da política econômica.
No atual contexto, a indústria não precisa
mais correr à frente do PIB, como acontecia durante a industrialização. Mas ela
deve ser remodelada a partir de uma nova orquestração entre Estado, setor
privado nacional e capital transnacional, que defina as suas frentes de
expansão. Trata-se de decidir "a indústria que queremos e podemos
ter", mantendo um núcleo duro capaz de gerar encadeamentos produtivos e de
incorporar progresso técnico; e que possa se aproveitar do dinamismo dos
setores de serviços, infraestrutura, construção civil e agrícola, expandindo o
seu potencial de acumulação e da economia como um todo.
Vivemos, de fato, uma transição
estrutural, que, no limite, pode acarretar o esvaziamento da nossa estrutura
industrial, caso esta perca musculatura e capacidade para acompanhar o
movimento da demanda interna e de ocupar novos nichos nos mercados
internacionais. Mas é cedo demais para entregar os pontos.
Se quisermos alterar o nosso padrão de
desenvolvimento, no sentido de ampliação da produtividade e de redução da
desigualdade, uma indústria forte e competitiva - apontando para os setores de
fronteira tecnológica e mantendo os setores intensivos em trabalho e recursos
naturais - torna-se fundamental.
Não se trata de tarefa fácil, capaz de ser
enfrentada apenas com ações de curto prazo e reuniões do governo com os setores
organizados. Falta projeto nacional, que pense a indústria para além da
indústria.
Alexandre de Freitas Barbosa é professor
de História Econômica e Economia Brasileira do Instituto de Estudos Brasileiros
da Universidade de São Paulo (IEB/USP).
Fonte: Valor
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